No momento em que narra os fatos de 'Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios', o fotógrafo Cauby está convalescendo de um trauma numa pensão barata, numa cidade do Pará (repleta de garimpeiros, comerciantes inescrupulosos, prostitutas e assassinos de aluguel) que algum tempo antes fora palco de uma corrida do ouro,
Sua voz é impregnada da experiência de quem aprendeu todas as regras de sobrevivência no submundo - mas não é do ambiente hostil ao seu redor que ele está falando. O motivo de sua descida ao inferno é Lavínia, a misteriosa e sedutora mulher de Ernani, um pastor evangélico que no passado havia tirado ela das ruas e das drogas.
A história conta também com os personagens Chang, um comerciante pedófilo; o misterioso Viktor Laurence, jornalista local; Dona Jane, proprietária da pensão; Seu Altino que há muitos anos mora na pensão; um garoto da redondeza que passa horas sentado na escadaria para ouvir as histórias de Seu Altino e as conversas alheias,quieto mas com ideias tilintando pela cabeça; entre outros.
Mesmo diante de todos os riscos que vão aparecendo no decorrer da história, Cauby decide cumprir seu destino com o fatalismo dos personagens trágicos. 'Nunca acreditei no diabo', diz ele, 'apenas em pessoas seduzidas pelo mal.'"
Apesar da intensidade e do peso de algumas passagens o livro é grandioso, são histórias de amores intensos e pecados descabidos, de normalidade e loucura que se intercalam entre os personagens. E o final é realmente emocionante!
Trechos e frases:
"O segredo, dizia Chang, o china da loja, não é descobrir o que as pessoas escondem, e sim entender o que elas mostram."
"... não é possível determinar o momento exato em que uma pessoa se apaixona. Se fosse, ele afirma, bastaria um termômetro para comprovar sua teoria de que, nesse instante, a temperatura corporal se eleva vários graus. Uma febre, nossa única sequela divina."
"Eu digo que está tudo bem, que não preciso de nada. Estou mentindo. Preciso de muita coisa, em especial numa noite como esta, em que Urano desliza mansamente pelo céu escuro."
"... a natureza do amor, de não nos permitir escolher por quem nos apaixonamos, é uma rota que pode conduzir à ruína."
"A grande desgraça é que as lembranças não bastam para confortar os amantes. Nunca aplacam. Ao contrário: servem só para espicaçar as chagas daqueles que foram condenados à lepra do amor não correspondido."
"Talvez, talvez. No reino amoroso, o professor Schianberg ensina, o "talvez" é moeda sem nenhum valor. Talvez se eu tivesse perdido aquele avião, talvez se não tivesse tomado aquele trem, quando ainda existiam trens."
"Ela me abraçou e encostou a cabeça em meu peito, bem em cima do meu coração atropelado."
"Adorava cinema. Se pudesse, passaria boa parte da vida dentro de uma sala escura. Era seu jeito de sonhar."
"Mostrei-lhe Truffaut, Meden, Mehldau, Murilo e Drummond. Falei de Cappa, de Kertèsz, de Richard Kern, de Eric Fischl e de outro malucos que andaram e ainda andam por aí atrás de poesia. Meus heróis. Mostrei-lhe um mundo, o meu mundo.E me assustei com o mundo que ela me mostrou."
"Apaixonados, ele diz, pensam que estão sempre a sós com o mundo. É um engano: estão apenas ofuscados pela luz que eles próprios emitem."
"Nunca prometemos nada um ao outro, e eu sabia que podia acabar de repente. Poema que cessa antes de virar a página. Um haikai."
"Um reencontro de corpos, o reconhecimento de um terreno nunca decifrado por completo. Mas não demorou para esquentar, e quando vi estávamos à beira do precipício. Meu orgasmo chegou como uma dor."
"Atire a primeira pedra aquele que não estremeceu ao recuperar, nos lençóis encardidos da cama em que dorme solitário, o cheiro da mulher ausente."
"...o desejo de se apossar por completo do outro é uma das doenças mais comuns do amor. É o resfriado das moléstias amorosas, segundo ele. O problema, Schianberg escreveu, é permitir que se transforme em gripe crônica. Costuma ser letal."
"Ernani tinha apreço por palavrões. Existiam momentos, ele acreditava, que só um bom expletivo podia extravasar de maneira adequada a cólera ou uma contrariedade. Bem melhor do que represar dentro de si o veneno de uma explosão adiada."
"Podia não amá-lo mas sentia-se amada, o que é bom, como sabe até mesmo o mais sarnento dos cachorros de rua."
"Muitas vezes, entre os amantes, em adição às afinidades do corpo, surge uma sintonia mental, intelectual, que ao propiciar jogos, provocações e brincadeiras privados acentua ainda mais o caráter . de cumplicidade na relação. Casais costumam estabelecer espaços particulares de comunicação, inacessíveis ao restante da manada humana ao redor. Intimidade psíquica."
"O que acontece é que quando estou com você, eu me perdoo por todas as lutas que a vida venceu por pontos, e me esqueço completamente que gente como eu, no fim, acaba saindo mais cedo de bares, de brigas e de amores para não pagar a conta."
"Nada me fazia falta naquele momento e nada do que eu tinha era excessivo. E nunca me senti tão alegre (e tão sozinho) na vida."
"É fácil imaginá-lo sentado de roupão à mesa colonial da sala, xícara fumegante de chá inglês ao lado, a pele da mão ainda mais amarelada pela luz do abajur, escrevendo com sua caligrafia rebuscada, cheia de floreios, rodeado por livros que, dá para afirmar sem medo de engano, ele amou muito mais do que as pessoas que conheceu no mundo."
"O professor Benjamim Schianberg, o homem que dizia ocupar-se das "fezes da alma", escreveu que nos alimentamos tanto do bem quanto do mórbido. No meio disso, ele assunta, existe a poesia."
"Falamos, falamos, falamos. E mesmo assim faltou dizer tanta coisa. E escutar também. Ela nunca disse que me amava. Jamais ouvi de seus lindos lábios a sentença que pronunciei algumas vezes."
"O careca não cansa de repetir que a esperança é o pior dos venenos? É. Porém muitas vezes é também o único remédio."
"Faço parte de uma ínfima minoria, integrada por monges trapistas, alguns matemáticos, noviças abobadas e uns poucos artistas, gente conservada na calda da mansidão à custa de poesia ou barbitúricos. Um clube de dementes de categorias variadas, malucos de diversos calibres. Gente esquisita, que vive alheia nas frestas da realidade. Só assim conseguem entregar-se por inteiro àquilo que consagraram como objeto de culto e devoção. Para viver num estado de excitação constante, confinados num território particular, incandescente, vedado aos demais. Uma reserva de sonho contra tudo que não é doce, sutil ou sereno. É o mais próximo da felicidade que podemos experimentar..."